Vergílio Ferreira
A Palavra
Se eu soubesse a palavra,
a que
subjaz aos milhões das que já disse,
a que às
vezes se me anuncia num súbito silêncio interior,
a que se
inscreve entre as estrelas contempladas pela noite,
a que
estremece no fundo de uma angústia sem razão,
a que
sinto na presença oblíqua de alguém que não está,
a que
assoma ao olhar de uma criança que pela primeira vez interrogou,
a que
inaudível se entreouve numa praia deserta no começo do Outono,
a que
está antes de uma grande Lua nascer,
a que
está atrás de uma porta entreaberta onde não há ninguém,
a que
está no olhar de um cão que nos fita a compreender,
a que
está numa erva de um caminho onde ninguém passa,
a que
está num astro morto onde ninguém foi,
a que
está numa pedra quando a olho a sós,
a que
está numa cisterna quando me debruço à sua borda,
a que
está numa manhã quando ainda nem as aves acordaram,
a que
está entre as palavras e não foi nunca uma palavra,
a que
está no último olhar de um moribundo, e a vida e o que nela foi fica a uma
distância infinita,
a que
está no olhar de um cego quando nos fita e resvala por nós,
– se eu soubesse a palavra,
a única,
a última,
e pudesse
depois ficar em silêncio para sempre…
in Uma Esplanada sobre o mar
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